segunda-feira, 30 de março de 2015

CRIMINALIZAR: SIM OU NÃO???

Por Ana Vladia Cruz, psicóloga e integrante do Comitê Cearense pela Desmilitarização da Polícia e da Política

Este mês ocorreu mais uma rebelião no Centro Educacional São Miguel. Não é a primeira do ano entre as unidades socioeducativas de privação de liberdade e, possivelmente, não será a última. Em 2014 foram pelo menos 30 as rebeliões registradas. O Sistema está sucateado, superlotado e sem a mínima condição de garantir os direitos mais elementares de adolescentes e funcionários, a exemplo da saúde e da integridade física. Ainda mais grave: as unidades – idealizadas para a socioeducação de adolescentes que entraram em conflito com a lei através do acompanhamento com equipe multiprofissional e do acesso à educação, profissionalização, esportes, lazer e cultura – tornaram-se locais de tortura sistemática. Não se trata de um apelo retórico: é de sofrimento e dor, infligidos de forma deliberada, a que nos referimos. São casos de espancamentos, estupro, dopagem coletiva e isolamento compulsório ilegal – práticas de sanção disciplinar que estimulam a violência e a intolerância, geram marcas psicológicas e comprometem o desenvolvimento do adolescente e as relações dentro do espaço institucional.
Na mais recente visita realizada ao Centro, dia 26, foram encontradas marcas de sangue na cela de isolamento (conhecida como tranca), medicamentos vencidos e seringas utilizadas guardadas em gavetas, indicando a possível reutilização do material. No início do mês, a ANCED, o CEDECA e o Fórum DCA denunciaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos as mais diversas violações à que estavam sujeitos os adolescentes nestas unidades. Além dos casos de tortura e maus tratos, a petição ressaltou a interdição de três das unidades por superlotação que superavam em 400% o número de vagas; a ausência de aulas e atividades profissionalizantes; as equipes insuficientes e deficitárias, em precárias condições de trabalho; e a suspensão das visitas. Em 2009, o CEDECA já havia ingressado com Ação Civil Pública requerendo providências com relação à execução da medida de privação de liberdade; e em 2014 o Fórum DCA publicou o mais recente dos sistemáticos relatórios de Monitoramento do Sistema Socioeducativo, abrangendo ainda a Liberdade Assistida e o Sistema de Justiça. Não se pode afirmar, portanto, que o Executivo não sabia da violência cotidiana nos Centros Educacionais e das inúmeras deficiências e ilegalidades em todo o sistema de atendimento relacionado à justiça juvenil. Quanto ao judiciário, a banalização das medidas restritivas ou privativas de liberdade, em consonância com a condição concreta em que estas medidas são efetivadas, nos levam a crer que a redução da maioridade penal, esta ideologia criminal da intolerância que ganha força e voz na Câmara dos Deputados, infelizmente já é uma realidade no Ceará.
Aonde isso nos levará, é difícil prever. Mas é certo que não é um bom caminho. As relações consolidadas nestes espaços não contribuem para uma ressignificação positiva da vida mas, muito pelo contrário, ensinam a banalização da violência e da humilhação, a conquista do respeito pela força e pela barganha e a consolidação da dita “carreira do crime”. Propostas de encarceramento possuem forte impacto eleitoral, mas são inócuas quanto à redução da conflitualidade social. Nenhum país que apostou na redução obteve êxito na diminuição da violência de rua e, muito menos, da de colarinho branco. Nacionalmente, as taxas de reincidência nas penitenciárias estão em torno de 70%, enquanto no sistema socioeducativo constam abaixo de 20%.
A Liberdade Assistida, medida em meio aberto que deveria ser prioritária e que possui estatisticamente melhores resultados ao primar pela convivência e o acompanhamento familiar e comunitário, tampouco se encontra em boa situação. Dentre os CREAS pesquisados no Monitoramento, cada técnico atende a uma média de 45,8 socioeducandos, enquanto o determinado pelo SINASE é de, no máximo, 20 adolescentes por profissional. Os acompanhamentos ocorrem, na maioria dos casos, de forma mensal, fato que inviabiliza o real cumprimento do PIA (Plano Individual de Atendimento).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) são importantes marcos na garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Em oposição à histórica cisão entre crianças e “menores”, a legislação pretende garantir a todo segmento, com absoluta prioridade, as condições de liberdade e de dignidade para seu desenvolvimento físico, mental, moral e social, salvaguardando-a de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Existe, no entanto, um verdadeiro abismo entre os enunciados legais e a realidade. Em Fortaleza, o Índice de Homicídios na Adolescência chega a 9,92 para cada grupo de mil adolescentes – a pior posição em todo o país. Significa que, caso não haja nenhuma mudança no contexto de violência que atinge a esta população, para cada grupo de mil adolescentes que hoje possuem 12 anos, 10 não chegarão a completar a maioridade, pois serão assassinados. A explosão da violência que vitima letalmente nossa juventude é estarrecedora: o Ceará alcançou, em 2012, a marca de 94,6 homicídios por cem mil jovens, quando em 2002 este índice era de 34,2. Considerando apenas a Capital, o número proporcional de vítimas salta de 59,9 para 176,6 no mesmo intervalo de dez anos. Em 2013, foram mais de 12 mil as denúncias recebidas pelo Disque 100, sendo 1363 relativas a violência sexual envolvendo crianças e adolescentes.
Em que pese todo o incremento da violência contra adolescentes, o debate massivo diz não de sua condição de vulnerabilidade e ausência de direitos, mas do apelo ao seu aprisionamento. Assim, adiciona-se os estigmas às grades de ferro – jovens negros e da periferia são considerados potencialmente perigosos, “elementos suspeitos” – e segue-se criminalizando nossa juventude através do incentivo à militarização da Questão Social, o hiperencarceramento e a ocupação policial dos bairros populares.
Adolescentes a partir dos 12 anos já são responsabilizados pelos seus atos e podem cumprir até 9 anos de medida socioeducativa. Antes, portanto, da redução, é preciso cumprir o ECA e o SINASE. Inchar o falido sistema penal sem cumprir os requisitos básicos da socioeducação é assumir a total incompetência do Estado na garantia dos direitos mais elementares.
Diante deste quadro, precisamos defender o óbvio: prisão não desfaz desigualdade social e tortura não educa. Enquanto apostarmos no recrudescimento do Estado Penal e Policial para enfrentarmos os desdobramentos da desigualdade e da falta de acesso aos direitos, contribuiremos com a violência que gostaríamos de combater.

Fonte da Informação

Texto publicado no site https://desmilitarizar.wordpress.com/

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